segunda-feira, 21 de maio de 2007

Consolo

"Não há outro homem a quem aventurar-se a falar de memória assente tão mal. Pois praticamente não reconheço em mim vestígio dela, e não creio que haja no mundo uma outra tão prodigiosa em insuficiência. Tenho banais e comuns todas as minhas outras qualidades. Mas nesta creio ser singular e muito raro, e digno de por ela ganhar nome e fama.

"(...) Em certa medida, consolo-me. Em primeiro lugar porque esse é um mal pelo qual encontrei principalmente o meio de corrigir um mal pior que poderia facilmente ter surgido em mim, ou seja, a ambição, pois é uma falta (a falta de memória) inadmissível para quem se envolve nos negócios do mundo; e porque, como mostram vários exemplos semelhantes do andamento da natureza, esta de bom grado fortaleceu em mim outras faculdades na medida em que aquela se enfraqueceu, e facilmente eu iria deitando e enlaguescendo o meu espírito e o meu discernimento sobre os rastros de outrem, como faz o mundo, sem exercer as suas próprias forças, se as ideias e opiniões alheias estivessem presentes em mim pelo benefício da memória.

"E porque as minhas falas são mais curtas, pois o armazém da memória costuma ser mais bem provido de matéria do que o da invenção; se ela me tivesse favorecido, eu ensurdeceria os meus amigos com tagarelices, pois os assuntos despertam essa medíocre faculdade que tenho de manejá-los e aproveitá-los, inflamando e arrebatando as minhas palavras. Isso é lamentável. Experimento-o pela prova que me dão alguns dos meus amigos íntimos: à medida que a memória lhes fornece a coisa inteira e presente, eles recuam tanto a sua narração e tanto a carregam de circunstâncias inúteis que, se a história é boa, sufocam-lhe a excelência; se não é, começamos a maldizer ou o sucesso da sua memória ou o fracasso do seu discernimento."

Michel de Montaigne

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